Jorge Furtado, as enchentes e a tributação de doações

Pessoas e empresas que, generosamente, estão se disponibilizando para receber valores de doações do país inteiro e de outros lugares do mundo, sofrerão alguma forma de tributação?

Jorge Furtado encerra “Ilha das Flores” apontando que “o ser humano se diferencia dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por ser livre”

Em 1989, Jorge Furtado lançou um pequeno e notável documentário chamado “Ilha das Flores”, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre. O curta-metragem retrata os impactos que as relações econômicas têm sobre a população pobre e marginalizada que vive na Ilha das Flores, na região metropolitana da capital gaúcha. Algumas constatações são impactantes, como a afirmação de que “não há flores na Ilha das Flores”. Nos últimos dias, o Rio Grande do Sul vive outra situação dramática, decorrente da sua maior catástrofe climática, consistente em enchentes que elevaram o nível do Guaíba para seu maior nível histórico. A própria Ilha das Flores, assim como as demais ilhas da região, está submersa.

A tristeza e o luto só não são maiores do que o empenho, a coragem e a grandeza das pessoas em lidar com os desafios no resgate de pessoas e animais, providência de abrigos e acolhimento, alimentos e água, afeto e alento num momento de tamanho desespero. Por isso, num período como este, pode soar mesquinho e patético falar sobre tributação. Um assunto que, não à toa, passou quase despercebido por todos neste. Todavia, é necessário. Pessoas e empresas que, generosamente, estão se disponibilizando para receber valores de doações do país inteiro e de outros lugares do mundo, sofrerão alguma forma de tributação? Eis a pergunta que, por mais absurda que possa parecer, não tem resposta clara.

No que diz respeito a tributos federais, a questão parece ser mais simples. Valores que meramente transitam pela contabilidade das empresas, sem definitividade, disponibilidade e efetiva titularidade não são receitas — e, portanto, não podem sofrer com a incidência de PIS/Cofins ou dos tributos do regime do lucro presumido. Já quanto ao IRPJ e CSLL, valores decorrentes de doações são isentos. A questão pendente diz respeito ao ITCMD, um imposto incidente sobre doações e heranças. Os casos de doações coletivas, que estamos vivenciando, se amoldam à figura do crowdfunding (ou financiamento coletivo). Envolvem a criação de uma estrutura para captação de dinheiro por um período de tempo determinado, de diversas fontes diferentes, para viabilizar financeiramente um determinado objetivo.

Existem várias formas de crowdfunding. Mas o que nos interessa, neste cenário de calamidade pública, é o chamado não oneroso (ou altruísta) de meta incondicionada, caracterizado por dois fatores: (i) o fato de que o colaborador pretende apenas ajudar o objetivo visado, sem buscar uma contraprestação ou benefício futuro; (ii) a ausência de um valor específico e determinado, de forma que quanto maior for a arrecadação, melhor. Com efeito, toda e qualquer doação sofre, ao menos potencialmente, a incidência de ITCMD. Da mesma forma, a rigor, crowdfundings costumam ser feitos via plataformas digitais. Mas o caso em análise merece atrair um olhar específico e o reconhecimento de sua natureza única e sui generis.

A legislação estadual traz hipóteses de isenção de ITCMD, atreladas a valores envolvidos, finalidade da doação, etc. Nenhuma delas, todavia, diz respeito a doações para o auxílio de calamidades públicas — o que pode fazer com que certos atos humanitários estejam ao alcance da tributação. Seria um erro crasso. O ITCMD é um tributo estadual, de forma que se estaria diante de um cenário em que o próprio Estado a quem se visa ajudar cobraria tributos pelo auxílio. Tamanha contradição seria, como já antecipado, mesquinha e patética. Um paradoxo impensável e inadmissível.

Jorge Furtado encerra “Ilha das Flores” apontando que “o ser humano se diferencia dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por ser livre. Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. O que se espera é que o Estado permita a todos a plena liberdade de serem generosos com seus cidadãos, não gerando empecilhos para que as doações cheguem a quem tanto precisa delas. Cogitar do contrário seria algo que, parafraseando o cineasta, ninguém explicaria e ninguém entenderia.

*Sócio do escritório RMMG Advogados, mestre em direito tributário pela UFRGS, associado ao Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e ao Instituto de Estudos Tributários (IET)

Pessoas e empresas que, generosamente, estão se disponibilizando para receber valores de doações do país inteiro e de outros lugares do mundo, sofrerão alguma forma de tributação?

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