A reação de potências ocidentais para rivalizar com o projeto chinês de nova rota da seda poderá beneficiar os países em desenvolvimento com fortes investimentos em infraestrutura
Apenas 11 anos depois de terminar o New Deal (1933-37), o grande investimento público em infraestrutura para reerguer a economia norte-americana após a crise de 1929, o governo dos Estados Unidos se viu obrigado a realizar bilionários investimentos na Europa e Japão (Plano Marshall, 1948-51), para reerguer as economias dos países devastados pela II Guerra Mundial. Um total de US$ 132 bilhões teria sido aplicado nesse período, segundo estimativas atualizadas (2020), ou US$ 1,3 trilhão, de acordo com o critério de correspondência da porcentagem de investimento do Orçamento do governo dos Estados Unidos (EUA) da época e o de 2020. Essa montanha de dinheiro beneficiou principalmente o Japão e a Alemanha, proporcionando-lhes o “empurrão” necessário para tornarem-se potências industriais, e, em duas décadas, a segunda e a terceira maiores economias do mundo.
Em 2009, foi a vez da China investir mais de US$ 500 bilhões em infraestrutura no interior do país, para escapar da contaminação da crise econômica, desencadeada pelo colapso do sistema financeiro norte-americano em 2008, que atingiu o mundo inteiro. Graças aos investimentos das empresas estatais e do governo central, a China conseguiu manter sua economia crescendo, o que possibilitou a outros países recuperarem-se mais rapidamente da crise, dado o volume de compras do segundo maior importador mundial e a continuidade de investimentos de suas empresas, principalmente na África e América Latina.
Quatro anos depois, a China tornou-se “a” investidora global em infraestrutura, com o maior conjunto simultâneo de obras de logística, através de aportes internos e na Ásia Central e África: a “Iniciativa Cinturão e Rota” (BRI), que teria recebido, até 2020, um total de US$ 140 bilhões. Esse investimento chinês é disputado na própria Ásia, e em todos os países da África e América Latina, porque permite diminuir o imenso déficit existente, principalmente no setor de transportes, com o aumento do modal ferroviário – algo vital para o desenvolvimento do Brasil e de vários países africanos, por exemplo. Para viabilizar recursos para a construção de ferrovias e outras grandes obras necessárias à conectividade mundial pretendida com a BRI, a China liderou a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como “Banco dos BRICs”, em 2014 (atualmente presidido pelo brasileiro Marcos Troyjo), do qual o Brasil faz parte, e em 2015 do Banco de Investimento em Infraestrutura da Ásia, que anuncia ser sua missão “financiar o amanhã”.
Continuando a construir o tempo todo, a China mantém em alta a sua demanda tradicional por cimento e aço – cerca de metade do consumo mundial –, e dinamiza a economia local das dezenas de países nos quais realiza obras – em geral, portos e ferrovias. A lógica chinesa parece ser a de reduzir custos de transportes de todos os países fornecedores de commodities (atuais e futuros), possibilitando-lhes assim também reduzirem os custos de internalização de mercadorias importadas, o que permitirá à China e a todos os seus parceiros comerciais diminuição de preços das mercadorias, fator decisivo para manter baixas as taxas de inflação e preservar o poder de compra das populações desses países.
Decididos a fazer frente à ofensiva mundial chinesa em investimentos em infraestrutura, EUA e União Europeia anunciaram em 1º de dezembro de 2021 o Global Gateway, visando ofertar até 300 bilhões de euros para investir em projetos públicos e privados na África, Ásia e América Latina; e no dia 26 de junho de 2022, lançaram o Build Back Better World (B3W), plano de investimentos em infraestrutura para países de baixa e média renda, declaradamente concorrente da “Nova Rota da Seda” (BRI) construída e operada pela China, ofertando digitalização, energia renovável e preservação ambiental aos países “da América Latina e do Caribe à África até o Indo-Pacífico”.
Segundo o informe oficial do governo norte-americano, o B3W é iniciativa sua e dos demais países integrantes do G7 “para ajudar a reduzir a necessidade de infraestrutura de US$ 40 trilhões no mundo em desenvolvimento até 2035” (…), “em quatro áreas de foco – clima, segurança sanitária e saúde, tecnologia digital e equidade e igualdade de gênero”, via mobilização de capital do setor privado e de instituições financeiras de desenvolvimento, como a Development Finance Corporation, Usaid, EXIM, Millennium Challenge Corporation e Agência de Comércio e Desenvolvimento dos EUA, por exemplo. Ainda é muito cedo para se avaliar os impactos possíveis resultantes da implementação do B3W, que teria sido elaborado a partir do Blue Dot Network (BDN), ambicioso plano estadounidense visando construir rede global de financiamento de construção de estradas, pontes, aeroportos, portos e usinas de energia, lançado em novembro de 2019.
Dada a necessidade de aprovação da liberação dos recursos do B3W pelas muitas instituições envolvidas, o mais provável é que os recursos só comecem a ser efetivamente liberados no segundo semestre de 2023. Até lá, o que há disponível são os recursos investidos pela China, que por sua vez enfrenta situação econômica difícil, resultante da combinação dos efeitos da pandemia no país e no mundo: queda do crescimento do PIB, dificuldades no transporte marítimo, crise no setor imobiliário, necessidade de absorver 11 milhões de universitários recém-formados no mercado de trabalho e aumento considerável da disposição – pública – dos EUA, Alemanha, França e Reino Unido em enfrentarem o maior exportador e investidor do mundo.
Evidentemente, a decisão dos “países ricos” de enfrentamento em campo aberto com a China, via investimento em infraestrutura tecnológica e de transporte nos países de baixa e média renda, é motivada essencialmente por razões de mercado. Todos os estudos da OCDE e dos EUA são muito claros em relação à liderança mundial chinesa nos próximos 20 anos, na economia, comércio exterior, indústria, tecnologia, inovação…
Realmente, ou os “países ricos” investem pesado agora, para aumentar a infraestrutura de países cujos mercados consumidores ainda podem ser disputados com as empresas chinesas, ou dentro de poucos anos essa “janela de oportunidades” deixará de existir, e serão relegados a segundo plano na disputa comercial mundial, perdendo a capacidade de reagir à ocupação de espaço. Traduzindo, trata-se de questão de sobrevivência deles, a médio e longo prazos.
O outro lado da moeda dessa possível trilionária oferta de recursos é o dos países que precisam de infraestrutura e não têm recursos para investir, principalmente da África e América Latina – e para os quais dispor desses financiamentos fará muita diferença nos próximos anos, para o bem e para o mal. Isso porque todos esses países – inclusive o Brasil – exporta muito mais produtos primários e importa muito mais produtos industrializados, para a China, EUA e países europeus. Ainda que o discurso desses planos hoje seja o de investir para o desenvolvimento dos países de renda baixa e média, permitindo acreditar que se quer de fato o progresso global via redução da pobreza, o retrospecto da relação no século 20 dos países europeus e EUA com países africanos, asiáticos e latino-americanos é o de continuidade da exploração de recursos naturais. Critérios objetivos terão de ser levados em conta na elaboração dos projetos e negociação dos empréstimos, visando garantir a industrialização 4.0 de todos os países beneficiários, para que tenham realmente um futuro melhor.
Sofrendo acentuada desindustrialização há 30 anos, perdendo mercados tradicionais para empresas chinesas, desperdiçando competitividade nas rodovias – mais de 60% da matriz de transportes – e em franca desvantagem no acesso e custo do capital, o Brasil é o caso mais emblemático de todos, pelas dimensões da sua relação comercial com a China (US$ 130 bilhões em 2021), pelo fato desse país ser o maior parceiro comercial e porque a maior parte das suas exportações são quatro produtos primários.
Sim, o Brasil e todos os demais países latino-americanos, africanos e asiáticos, de baixa e média renda, precisam muito de trilhões de dólares de investimentos em infraestrutura. E, pelo visto, a China e os “países ricos” têm necessidade de investir muito dinheiro na maioria dessas nações, em primeiro lugar para conseguir que o seu próprio futuro seja melhor. A chance dessa equação ser equilibrada depende essencialmente de qual país ou instituição de países beneficiários em potencial dos empréstimos liderará as negociações com os EUA, China e União Europeia. Experientes, os investidores certamente vão preferir dividir para continuar reinando, porque não lhes interessa simplesmente emprestar, mas, como sempre, vincular esses recursos emprestados à compra de equipamentos e contratação de serviços. Pensar estrategicamente a relação com a China, EUA e União Europeia exige olhar para 2050, que nem está tão longe assim. Provavelmente é o que alguns dos nossos vizinhos estão fazendo, e certamente também alguns países africanos e asiáticos. Até porque muitos deles vão aumentar exponencialmente a população até lá, enquanto alguns outros deverão encolher a quantidade de habitantes – inclusive o Brasil. Como sonhar não custa, em momentos assim sempre é bom pensar para o Brasil em triplicar a malha ferroviária, expandir a aviação regional e melhorar muito o transporte fluvial e os portos e transporte marítimo. Ter trem de carga e passageiros ligando Porto Alegre a São Paulo e ao Nordeste, e o Centro-Oeste ao Pacífico. Reindustrializar o país, agora “4.0”, é obrigatório para se construir um futuro melhor, e a indústria brasileira só será competitiva internacionalmente se sair dos caminhões para os trilhos e os portos.
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A reação de potências ocidentais para rivalizar com o projeto chinês de nova rota da seda poderá beneficiar os países em desenvolvimento com fortes investimentos em infraestrutura