Qualquer palavra que fuja do habitual é uma afronta

A ignorância das pessoas vem atingindo níveis inimagináveis

Dependendo do contexto, falar bem gera afastamento emocional, pois cria um fosso entre as pessoas

1 – Escrevi em minha página pessoal do Facebook que uma atriz estava mal fornida de carnes, visto que achei-a muito magra na televisão. Duas mulheres não gostaram da expressão “fornida”. Uma rima possível acendeu fantasias. Acho, sinceramente, que como o mundo se acostumou a um vocabulário adolescente, dada a consagração das lideranças analfabetas, qualquer palavra que fuja do habitual é vista como uma afronta.

2 – Ora, uma pessoa fornida é sinônimo de robusta, bem alimentada, forte e carnuda. Vem de “fornir”, expressão que data de antes do descobrimento e cujo antônimo é magra ou desprovida. No Nordeste, onde o português bebe de fontes mais elaboradas, nunca enrubesci quando mamãe, expressando contentamento com nossa satisfação à mesa, dizia que estávamos lindos e fornidos.

3 – A ignorância das pessoas vem atingindo níveis inimagináveis. Em São Paulo, sabidamente, falar bem nunca esteve em grande voga. Isso eu percebi quando cheguei aqui. Frases completas com um vocabulário minimamente variado sempre causaram um certo constrangimento. A depender do seu interlocutor, você ouvia: “Hum, so desu ka? Fara difichil, né?” Esse padrão, sim, é consagrado.

4 – Terra de imigrantes, de pessoas que muitas vezes saíram de seus rincões com poucas letras em italiano, árabe, espanhol ou mesmo português, muitos falaram até o fim da vida um brasileiro eivado de inflexões calabresas, levantinas, galegas, catalãs ou mirandesas. Em São Paulo, comer os “esses” é até hoje uma praxe bem vista. Como se sabe, não se faz plural no italiano com essa consoante.

5 – Falar bem pode também gerar reações de maravilhamento indevido, meio bocó. Muitas vezes você se pegava contando uma historinha ou uma reminiscência para amigos e, de repente, dois ou três ouvintes se juntavam para ouvi-lo. Não se ligavam no mérito da mensagem, senão nas palavras, na construção das frases. O que também gerava desconfiança. “Esse aí fala bonito demais pro meu gosto… É perigoso.”

6 – E por que? Primeiro porque, dependendo do contexto, falar bem gera afastamento emocional, cria um fosso entre as pessoas. Segundo porque as palavras podem esconder um punhal. Sob o veludo das palavras inebriantes, pode se ocultar a lâmina que mira a jugular. Falar bem, com certa exuberância, é coisa de estelionatário, de político, de enganador, de manipulador. Palavras, palavras…

7 – Mas voltemos às anatomias bem fornidas de carnes. Tenho certeza de que a expressão não surpreendeu muito quem fala francês. O verbo “fournir” está bem presente no dia a dia da França, da Bélgica, da Suíça ou das Ilhas Maurício. Quem fala italiano também sabe que um “fornitore” é um aquele que abastece, que supre – levando uma loja ou uma despensa a ficar bem fornida.

8 – Ora, tanto homens quanto mulheres podem ser bem ou mal fornidos de carnes. Mesmo quando têm o mesmo nome. Vejam só: Fernanda Torres, nossa querida atriz, é mal fornida de carnes. Está magra, pele e osso. Isso me assustou. Pode ser que ela esteja trabalhando muito e comendo pouco. Pode ser que o grande sucesso como roteirista e escritora a esteja privando de ganhar uns quilos. É questão de cognição.

9 – O bem menos querido Fernando Dourado, por outro lado, é extremamente bem fornido de carnes. Está gordo, é praticamente impossível apalpar um osso de sua encorpada anatomia. lsso a assustaria, fosse eu pessoa relevante. Pode ser que eu esteja me exercitando pouco e comendo muito. Pode ser que o retumbante fracasso de Fernando como maratonista o esteja levando a ganhar uns quilos.

10 – Daí pergunto: onde está o dolo? O que há de tão ofensivo em falar como eu falei? Ora, se Trump foi presidente dos Estados Unidos com “wonderful” e “great”, por que um arigó do Agreste se arvora em usar um palavrório fornido de arabescos, redondilhas e penduricalhos? Ora, é melhor fazer como os dois pacóvios que conversavam há pouco num restaurante japonês.

11 – Construíam a sua próspera nulidade num patoá que, este sim, galvaniza unanimidades. Comigo, não, obrigado. Francamente!

A ignorância das pessoas vem atingindo níveis inimagináveis

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