O fim da instituição “de ensino”

Painel realizado no Grupo +A Educação projeta uma realidade de mudanças profundas para professores, escolas e universidades

O número de brasileiros que ingressou em cursos de graduação a distância superou, pela primeira vez, o total de estudantes matriculados na modalidade presencial

Era o Dia da Educação, 28 de abril, e a +A Educação, que já foi Artmed, decidiu montar em sua nova sede, em Porto Alegre, uma grande mesa oval para ouvir especialistas, ali mesmo ou via teleconferência, e colocá-los a interagir com jornalistas brasileiros. O que se descreve a partir de agora pode ser resumido em algo como “duas horas de virar a cabeça”, especialmente para educadores e instituições que, aberta ou discretamente, ainda rejeitam modernidades que não fizeram parte do ambiente em que construíram sua jornada de excelência.

Os fatos, contudo, se impõem. O número de brasileiros que ingressou em cursos de graduação a distância superou, pela primeira vez, o total de estudantes matriculados na modalidade presencial. “Acadêmicos, docentes, alunos, perceberam a importância da educação híbrida”, atesta o CEO da +A Educação, Celso Kiperman. Mas ele próprio reconhece que este processo que combina o melhor dos mundos – a interação de aulas presenciais e a flexibilidade do online – poderia ter avançado bem mais rápido, e há muito tempo. “Nós, que atuamos há mais de dez anos com educação mediada por tecnologia, percebíamos que a comunidade acadêmica via esta modalidade como uma educação de segunda categoria, mas a pandemia fez com que este ´patinho feio´ fosse o grande salvador das atividades educacionais e a partir de agora notamos um uso muito mais efetivo, e até criativo, das tecnologias”, compara Celso.

Adriane Kiperman, diretora editorial da +A, concorda com o irmão na crença de que, agora, a coisa vai e o ensino híbrido tende a deslanchar. Mas ao abrir o seminário em que atuou como mediadora, ela deixou um pé atrás. “A educação estava pedindo por inovação e a pandemia apenas empurrou a porta e virou a chave da educação meio a fórceps para que todas as tecnologias que há muito tempo estavam disponíveis aportassem subitamente na sala de aula”, disse Adriane, sem esconder uma preocupação com retrocessos. “Agora, com o fim da pandemia e a volta do ensino presencial, temos um temor de que se volte atrás, porque a educação tende a ser muito tradicional e a evitar mudanças”, admite. “Mas o que defendemos é que se dê o passo adiante na transformação digital que é preciso ser feita na educação, e o caminho para isso é o ensino híbrido.”

A transformação digital foi experimentada na própria casa dos Kiperman, que em 2023 vai comemorar 50 anos de uma trajetória contada no livro “Todas as Páginas de Henrique Leão Kiperman”. Henrique varava o interior do Paraná e do Rio Grande do Sul com o porta-malas de seu carro empanturrado de livros médicos. Em 1973, abriu uma pequena livraria no centro de Porto Alegre. Nos anos 1990, tornou-se editor e deu início a um processo de integração gradativa de Celso, e depois Adriane, na editora, ampliando progressivamente o leque de conteúdos de medicina e saúde mental, primeiras especialidades, para educação, administração, e outros segmentos que compõem o espectro de publicações CTP – científicas, técnicas e profissionais. A Artmed Sul já havia se tornado a maior editora fora de Rio e São Paulo quando, em 2003, ingressou no mercado de educação continuada a distância com um sistema de tecnologia, conteúdo e serviços que hoje tem 50 mil assinantes ativos e já formou mais de meio milhão de profissionais da saúde. Em 2010, já com o nome de Grupo A, os Kiperman deram nova guinada ingressando no mercado de Edtechs como distribuidores no Brasil das soluções da norte-americana Blackboard para clientes do porte de Insper e Ibmec. O salto seguinte veio em 2015 com a criação de uma plataforma de conteúdo, a Sagah, que apostou em conceitos e ferramentas como “metodologias ativas”, “sala de aula invertida” e “ensino híbrido”.

Nova cartada foi urdida em 2018, quando Celso vislumbrou um mercado significativo formado por instituições de ensino superior tradicionais, de grande reputação acadêmica, mas com dificuldades para empreender a transformação digital de suas atividades. Ofereceu a elas um pacote que incluía de tecnologia ao treinamento de professores, passando pela captação de alunos e vendas. Foi o início do projeto + Campus. Toda esta reinvenção da companhia atraiu um sócio de peso, o Grupo Itaú, que em 2018 comprou, através de sua gestora Kinea, 40% do negócio hoje repaginado como + A Educação.

“Se me pedissem para dizer o que somos, hoje, diria que somos uma plataforma de conteúdo, tecnologia e serviços que viabiliza a transformação digital de universidades, hospitais, instituições científicas e até de autores”, define Celso. A propósito, ele calcula que, dos lançamentos pioneiros capitaneados pelo pai até as obras multiautorais do serviço de educação continuada oferecido nos dias atuais, a +A já tenha publicado mais de 100 mil autores. “Acho que o conhecimento e a confiança de tantos autores são o nosso mais sólido pilar para seguir em frente.”

E o que vem pela frente foi, precisamente, a questão lançada pela casa no Dia da Educação, com um seminário sobre barreiras e oportunidades para a afirmação de um modelo de educação híbrida no Brasil. Fez parte do programa a apresentação de uma “Edtech Room” para mostrar “novas experiências imersivas” em educação. “Imagine estudantes de medicina participando de uma cirurgia ou futuros engenheiros atuando em canteiros de obras sem sair da sala de aula ou até mesmo de casa”, instigava a nota distribuída pela empresa aos jornalistas. “Isso já é possível com o uso de laboratórios virtuais, objetos de aprendizagem em 3D, vídeos 360 graus, realidade aumentada e recursos que compõem um metaverso para facilitar o processo de aprendizagem.”

A seguir, uma síntese de algumas das percepções que os painelistas apresentaram sobre os rumos da educação.

Lilian Bacich, diretora da Tríade Educacional, autora de Ensino Híbrido: Personalização e Tecnologia na Educação
“A gente ainda está em uma fase de alinhamento conceitual sobre ensino híbrido. Para entender o potencial das tecnologias digitais daqui pra frente, vamos considerar, primeiro, a dificuldade de acesso. Sabemos que a tecnologia digital ainda não é para todo mundo, está bem distante de ser. Segundo, muitas instituições, no início da pandemia, começaram a fazer uso da tecnologia digital mas sem uma visão de metodologia ativa, que é o que a gente defende como aposta para um engajamento e para construção de conhecimento. Só levar tecnologia digital para a instituição não é o que irá fazer a diferença. Só fará diferença se [a tecnologia] tiver uma utilização que leve o aluno a construir conhecimento.”

“Vemos que a utilização da tecnologia digital disparou outros gargalos, e um deles é o da avaliação. O pessoal do ensino superior, e também da educação básica, que centrou o uso da tecnologia digital na mera transmissão de aulas, começou a ouvir dos professores questões do tipo “Ah, o meu aluno não abre a câmera. Ah, o meu aluno não participa. Não sei se ele está aprendendo porque eu não o vejo.” Como se olhar para o aluno fosse um instrumento avaliativo, e vê-lo sorrir pudesse indicar que ele está aprendendo. Não é isso. Então, um primeiro gargalo é este: professores e educadores de todos os segmentos e níveis têm dificuldade em coletar evidências de avaliação. E a gente tem várias publicações que trazem esta questão de como é que eu coleto evidências de avaliação.”

“Portanto, eu penso que, daqui para a frente, os desafios serão, além dos técnicos – de ter o recurso, ter conectividade –, saber como é que eu organizo diferentes espaços de aprendizagem. E não vai ser voltando para um algo [modelo exclusivamente presencial) que a gente já sabia que não daria certo. Será preciso olhar para a frente e pensar como é que esses elementos realmente impactam na aprendizagem, porque, como bem disse a Adriane, tecnologia é meio. A inovação na educação deve ser muito mais metodológica do que tecnológica.”

“O resultado brasileiro no PISA deixa claro que a gente desenvolve pouquíssimo a criatividade dos nossos alunos, que muitas vezes não conseguem lidar com certas situações por uma dificuldade de comunicação. E esta é uma das lacunas do modelo atual. Deveríamos trabalhar muito fortemente o desenvolvimento de competências socioemocionais, que são e serão cada vez mais importantes… Mas não vai ser numa aula expositiva que isso vai acontecer. O uso da tecnologia digital é muito importante nesse sentido. Mas o aluno não pode entrar em contato com a tecnologia para ser apenas um consumidor de recursos digitais. Precisamos proporcionar que ele seja cada vez mais um produtor. Ser um “prosumer”, que é o termo para expressar uma relação do aluno com os recursos digitais que é de consumir e de produzir.”

“O ensino híbrido envolve diferentes espaços de aprendizagem e diferentes formas de aprender. Não é só o digital, claro. A presença humana, esse olho-no-olho, a possibilidade de você estar com outras pessoas, isso o digital nunca vai substituir. E o docente precisa entender que o digital não vai substituir o seu trabalho, vai vir somar. Mesma coisa em relação à avaliação do aluno. A plataforma adaptativa vai dar ao professor um monte de dados. Ótimo, agiliza o trabalho do docente. Mas é fundamental a interpretação do humano, que pega esses dados olha para eles, pensa o que vai fazer com eles.”

Vidal Martins, vice-reitor da PUCPR
“O desafio é promover uma mudança cultural na educação. As tecnologias estão aí faz tempo. A própria PUC Paraná, no final dos anos 1990, desenvolveu um ambiente virtual de aprendizagem. Século passado, portanto… Hoje, sabemos que há mais de 180 diferentes tecnologias que estão mapeadas e podem ser utilizadas em diferentes atividades para alcançar diferentes resultados de aprendizagem.”

“Em 2014, começamos na PUC Paraná a trabalhar metodologia para impactar na aprendizagem. A gente até brinca com o fato de que somos chamados de IES, instituições de ensino superior, quando nós deveríamos ser chamados, mesmo, é de instituições de aprendizagem superior, IAS. Porque o foco tem de estar no estudante e na aprendizagem e não no ensino, na transferência de informação. O foco tem de estar na capacidade do estudante de transformar e de construir ensino.”

“Então, além de nos direcionarmos para essa ideia de aprendizagem, passamos a trabalhar por competências, definindo claramente os resultados de aprendizagem que se desejava obter. Que experiências de aprendizagem eu tenho de promover para que o resultado venha? Como é que eu avalio a aprendizagem propriamente dita? E, depois de toda essa sequência, onde entra a tecnologia? Porque tecnologia é meio. Eu devo partir de uma competência que eu quero desenvolver.”

“Para desenvolver tudo isso, criamos um centro de ensino e aprendizagem, um centro de suporte aos professores. O Creare é formado por vários professores que interagem com o que existe de inovador em ensino e aprendizagem no mundo. Estes professores participam de grupos de estudos e eventos relacionados e transferem estas informações para a nossa universidade por meio de núcleos de excelência pedagógica. O que são estes núcleos? São professores nas escolas. E deste modo os avanços no processo de ensino e aprendizagem chegam na ponta, nas escolas. Forma-se uma rede de apoio. Integrantes do Creare e do núcleo de excelência pedagógica meio que adotavam, digamos assim, os professores que estavam em uma fase inicial no desenvolvimento de algumas competências.”

“Desde 2014 a gente faz o desenvolvimento destas novas competências dos professores por meio de formação continuada. Claro que a gente não tem como levar 1.500 professores para fora do país para participar de um evento, mas temos como trazer um evento de nível internacional para dentro da instituição. E a nossa universidade faz isso com frequência, trazendo pessoas muito boas de dentro e de fora do Brasil para fazer esses grandes eventos de nível internacional que nos dão os grandes estímulos de mudança.”

Gustavo Hoffmann, pesquisador em Inovação Acadêmica na Universidade de Harvard
“Muito se tem falado que, passada a pandemia, a educação pode voltar a ser o que era antes. O grande problema é que, antes da pandemia, as coisas não estavam nada bem. No Brasil, a gente faz educação baseada em feeling, “eu acho que…”. Eu gosto muito de educação baseada em evidências e indicadores. Vamos medir o que a gente faz, vamos entender onde e como o aluno aprende mais, fica mais satisfeito, mais engajado. E há alguns números que indicam porque nosso modelo educacional, presencial, expositivo, está falido. Vou trazer alguns números não do setor educacional, mas do mundo do trabalho.”

“Um estudo de 2017 feito pelo Institute for the Future com a Dell estima que 85% dos trabalhos que existirão em 2030 ainda não existem. Ou seja, nós estamos formando alunos para fazerem não sabemos exatamente o quê. Você pode dizer ´Poxa, eu sei o que estou fazendo, estou formando um médico, um engenheiro…´ No entanto, a McKinsei acredita que 60% das profissões que hoje existem já são tecnicamente automatizáveis. Com Inteligência Artificial, Aprendizagem de Máquinas, você já consegue fazer 60% do que as profissões tradicionais fazem. O Lanfo, laboratório da Universidade de Brasília, projeta que 54% dos empregos que hoje existem serão tecnicamente automatizáveis em 2026. E que 79% do que hoje faz um engenheiro, um advogado, um médico, será substituído por inteligência artificial em 2026. Ou seja, as competências que nos trouxeram até aqui não vão nos levar adiante.”

“Em 2019, eu tive uma experiência fantástica na NUS, National University of Singapore, que hoje está em primeiro lugar no ranking da Ásia. Os gestores da NUS colocaram de uma forma muito clara que, hoje, 37% da receita da universidade já vem da vertical que eles chamam de Lifelong Learning [aprendizagem ao longo da vida]. Eles acreditam que cada egresso da NUS vai exercer seis carreiras diferentes ao longo da vida. Não são seis empregos diferentes, não. São seis carreiras. A pessoa vai mudar de profissão seis vezes. Logo, estamos formando profissionais para fazerem não sabemos exatamente o quê.”

“Participei de uma reunião do Banco Mundial, em 2019, em Nova Délhi, na Índia, discutindo o futuro das competências do mundo do trabalho para os próximos anos. E cada vez mais competências comportamentais e socioemocionais vão ser importantes, porque estas dificilmente serão substituídas por inteligência artificial, por aprendizagem de máquina. E as competências técnicas, as hard skills, cada vez mais vão se tornar obsoletas. Então, trabalhar em currículos e metodologias que desenvolvam competências socioemocionais é fundamental para o indivíduo mudar de profissão, mudar de carreira, exercer profissões que, inclusive, ainda não existem.”

“Como juntar tecnologia e metodologias para essa mudança tão necessária? E porque nosso modelo expositivo e de sala de aula tradicional está falido? Existem dois motivos para revisitar o modelo atual. O primeiro é que, hoje, tanto na educação básica como no ensino superior, de 80% a 90% do que acontece dentro de sala de aula é exposição de conteúdo. Como Vidal colocou, é informação, transmissão de conhecimento. A gente sabe muito bem que isso não funciona, pois 15 dias depois de uma aula expositiva os alunos tendem a se lembrar de aproximadamente 20% a 25% do que aquele professor falou. Ou seja, do ponto de vista de aprendizagem, se em duas semanas o aluno esquece de 80% do que viu, imagina um semestre depois, um ano depois….”

“E o segundo motivo, para mim mais relevante ainda, é que cada aluno tem um ritmo individual de aprendizagem. Quando a gente pega 50, 60 alunos e coloca numa mesma sala de aula, e expõe conteúdo no mesmo ritmo para todo mundo, a gente acaba não respeitando essas individualidades inerentes ao processo. Então o acesso a conteúdo, que hoje acontece predominantemente em sala de aula, poderia e deveria acontecer em qualquer hora e em qualquer lugar. Se eu pego esse conteúdo, estruturo, coloco num ambiente virtual de aprendizagem ou numa plataforma adaptativa, eu permito que cada aluno, no seu próprio ritmo, quantas vezes quiser ou precisar, tenha acesso a esse conteúdo. Isso permite que nos momentos presenciais, ou síncronos, dentro de sala de aula ou em ambiente tecnológico que permita interação, esses momentos sejam utilizados para menos exposição e mais aplicação desses conteúdos através de metodologias ativas de aprendizagem.”

“Ou seja, a tecnologia vem para que a sala de aula esteja disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, respeitando o ritmo de aprendizagem de cada um e permitindo que momentos presenciais sejam utilizados para mais aplicação. A sala de aula invertida é um excelente modelo para usar a tecnologia e as metodologias em prol de uma educação que, de fato, faça mais sentido, mas existem várias outras formas de usar a tecnologia com esse objetivo de melhorar o engajamento, a aprendizagem e a percepção dos alunos. Acho que a gente já tem tecnologias, já tem metodologias… O que nos falta é iniciativa para fazer uma educação melhor. Voltar ao que era antes da pandemia? Para mim é um grande retrocesso. Não dá. A gente tem uma baita oportunidade de transformar. A gente quebrou cultura, a gente quebrou uma grande resistência que havia de uma forma geral em relação ao uso de tecnologia…. A gente tem o cenário ideal para que essa evolução aconteça. Não vamos deixar voltar ao que era antes. Porque não estava bom. Ao contrário.”

Painel realizado no Grupo +A Educação projeta uma realidade de mudanças profundas para professores, escolas e universidades

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