Na sala com Danuza – literalmente

Lembranças de uma tarde de abril

Danuza provou que é possível viver mais do que as duas vidas pelas quais suspirava Mastroianni, desde que exista disponibilidade para tanto

Se, como dizia Marcello Mastroianni, deveríamos ter duas vidas, uma para ensaiar e outra para atuar, Danuza Leão extrapolou: teve várias ao longo de seus 88 anos. Resultado de sua postura libertária e independente, ela transitou entre o grand monde brasileiro e europeu com a mesma naturalidade com que abraçou a frugalidade na última década e meia de existência. E foi esta encarnação simplifier de Danuza que me levou até ela em abril de 2012.

Eu estava compilando relatos de pessoas que haviam optado por estilos de vida menos corridos e consumistas, e Danuza, à época, lançara um livro a respeito do assunto. Mandei-lhe um e-mail e fiz o convite para uma conversa. Ela se dispôs a colaborar, mas estranhou minha disposição de ir ao Rio para entrevistá-la: “Você vem só para isso? E se não render?”. Disse-lhe que aproveitaria para fazer outras entrevistas, o que não era verdade – Danuza e o Rio, por si só, valiam a viagem.

Marcamos para às 11h de uma sexta-feira 13, no café da Livraria da Travessa, em Ipanema. Pontual e simpática, perguntou, ao me cumprimentar, sem qualquer laivo de afetação: “André, o que você quer comigo?!”. Expliquei-lhe o tema da pesquisa e iniciamos o bate papo.

Ao fim da conversa, entreguei-lhe um exemplar do meu livro “Precisar, Não Precisa”, sobre consumo de luxo – tema com o qual ela ganhara notória familiaridade ao longo da carreira de modelo, RP de casa noturna e viajante inveterada. Trocamos mais algumas palavras e nos despedimos.

Saí dali e fui com minha mulher, Camille, almoçar nas proximidades. Ao fim da refeição, recebi um telefonema de Danuza. Ela havia dado uma olhada no livro que lhe entreguei e gostado do conteúdo, e queria conversar mais sobre o assunto. Nos convidou para ir ao seu apartamento, na rua Joana Angélica, localizado em um prédio no qual havia morado “o poeta e diplomata Vinicius de Moraes”, segundo uma placa na entrada. Fomos recebidos por ela e seu simpático cãozinho, Bijou, recém-chegado à casa que já contava com um gato (“eles não se dão”, informou). O papo na sala de seu apartamento durou mais uma hora. Danuza serviu sorvetes de manga e chocolate para Camille, me mostrou seu closet e comentou aspectos da decoração – um quadro mandado vir de algum país da América Central, formado pela colagem de borboletas verdadeiras, como em revoada, era especialmente bonito. Desmentiu a placa na entrada do edifício (“A Gilda (quinta e última esposa de Vinicius) me disse que ele nunca morou aqui”) e mencionou, en passant, que não cultuava o passado: só há pouco soubera, por exemplo, de uma escola pública carioca que levava o nome de Samuel Wainer, seu primeiro marido. A vida era para frente.

Numa troca de e-mails posterior, em que agradeci sua receptividade, disse-me que eu era um homem de sorte, pois “Camille é muito bonita e simpática”. Mais adiante, pedi-lhe que escrevesse o prefácio do livro para o qual sua entrevista fora colhida. “Não sei fazer isso, nunca fiz”, ela retrucou. Sugeri que escrevesse como um depoimento em primeira pessoa, tal qual as crônicas semanais da Folha de S. Paulo. E assim fez: “Por uma vida mais simples” é prefaciado por ela.

Morta na última quarta-feira, Danuza provou que é possível viver mais do que as duas vidas pelas quais suspirava Mastroianni, desde que exista disponibilidade para tanto – e de que a vida sabe retribuir a quem se oferece a ela sem medo e preconceito.

Lembranças de uma tarde de abril

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