Impossível pensar na época o aumento de produtividade que ocorreria na produção de todos os tipos de alimentos
Fenômeno recorrente na Índia, com episódios de grande magnitude nos séculos XVIII, XIX e XX, a falta de alimentos no país causou 10-11 milhões de mortes por fome em 1769-73; novamente em 1783-84; e em 1789-93, período que coincidiu com o início da vida do inglês Thomas Malthus (1766-1834). Dada a relação da Inglaterra com a Índia na época, as dimensões e velocidade de crescimento da população e os devastadores episódios de fome no país impactaram o futuro economista Malthus, levando-o a escrever sobre os dois temas – seu primeiro livro a respeito foi publicado em 1798.
Poucos anos após a morte de Malthus, a China passou por dois períodos de fome, durante os quais teriam morrido dezenas de milhões de pessoas: a revolta Taiping (1850-64) e a grande seca na região noroeste (1876-79). Ocorreram mais episódios de fome no país durante a primeira metade do século XIX, nenhum tão grande como esses dois. Sabendo-se que estimativas de quantidades de mortos em situações assim são sempre discutíveis, por razões óbvias. Na revolta Taiping, por exemplo, há quem afirme que teriam morrido cerca de 60 milhões de pessoas – nos combates, depois deles, por fome, sede, frio e por doenças.
Passados pouco mais de 200 anos da previsão sombria de Malthus (para ele, o crescimento geométrico da população mundial ultrapassaria o crescimento aritmético de alimentos, levando a Humanidade a crise insolúvel), a população da Índia ultrapassará a da China – em 2023 –, no patamar de 1,4 bilhão de habitantes em um mundo então com oito bilhões de pessoas, das quais cerca de um bilhão famintas e 650 milhões obesas.
Muito em breve o país com a maior população do mundo (oito vezes mais habitantes do que tinha no século XIX), a Índia segue produzindo e importando bem menos alimentos do que o necessário para alimentar a sua enorme população, segundo os dados da Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO): havia no país, em 2019/2021, um total de 224 milhões de pessoas subnutridas, e em 2020 a produção de grãos chegou a 335 milhões de toneladas – enquanto a da China foi de 616 milhões. Em outros alimentos, como batata, por exemplo, a diferença entre os dois países com população de igual tamanho também é chocante: 78 milhões de toneladas na China, 50 milhões de toneladas na Índia…
Diferentemente da Índia, a China deixou na poeira da história a tragédia da fome, com a última que se tem notícia ocorrida em 1958-61. Em 1962, a China tinha 673 milhões de habitantes, e teria produzido 170-185 milhões de toneladas de grãos. Sessenta anos depois, atingiu 1,43 bilhão de habitantes e 683 milhões de toneladas.
Certamente Malthus não imaginou a China alimentando 1,4 bilhão de pessoas em 2022, porque quando ele nasceu, em 1766, a China tinha apenas 208 milhões de habitantes, e o mundo inteiro algo em torno de 700 milhões. Impossível pensar na época o aumento de produtividade que ocorreria na produção de todos os tipos de alimentos. Muito menos que um país conseguisse proporcionar à sua população uma tal condição de vida que todas as pessoas pudessem comprar comida regularmente. E é esse o “segredo” do sucesso chinês na alimentação: acesso. Toda a população da China tem acesso a alimentos, porque aumentou muito o seu poder aquisitivo nos últimos 40 anos. A renda per capita pela paridade de poder de compra (PPP) na China em 2021 chegou a US$ 19.338 – a do Brasil US$ 16.056, e a da Índia US $7.333.
A Organização das Nações Unidas (ONU) nos fez lembrar dessas questões, e de Thomas Malthus, no Dia Mundial da População, comemorado no dia 11 de julho, ao informar suas previsões de crescimento populacional até o final do século, sem apresentar as provas de que haverá aumento da renda e da produção de alimentos que permita ao mundo chegar aos 10,4 bilhões estimados. Maior fornecedor mundial de alimentos para a China, o Brasil poderá ser também o maior para a Índia e seus vizinhos a noroeste (Paquistão) e a leste (Bangladesh).
Somados, esses quatro países asiáticos possuem hoje 3,2 bilhões de habitantes, exatos 40% da população mundial. Se houver aumento da renda da população desses três países como ocorreu na China, o mercado mundial de alimentos terá demanda adicional de 500 milhões de pessoas ou mais (que hoje passam fome ou comem menos do que o mínimo necessário), o que deverá resultar em aumento dos preços e da produção de alimentos, com impactos econômicos e ambientais imprevisíveis.
Essa equação do aumento da renda da população versus maior disponibilidade de alimentos, resolvida pela China nas duas pontas – sacrificando a soberania alimentar, com importações crescentes, mas garantindo a segurança alimentar –, inviabiliza as previsões da ONU dos oito países (República Democrática do Congo, Etiópia, Tanzânia, Paquistão, Nigéria, Índia, Filipinas e Egito) cujas populações deverão crescer mais até 2050, porque a renda per capita dos cinco primeiros é inferior à da Índia, que é quase um terço da chinesa. As situações menos piores são as das Filipinas, com renda de US$ 9,1 mil, e do Egito (US$ 13,3 mil).
Impossível pensar na época o aumento de produtividade que ocorreria na produção de todos os tipos de alimentos