A reinvenção de vida de Carlos Ghosn me fascina
1 – A evolução do conflito no Líbano impediu que eu desse sequência a um plano. Minha intenção era a de ir em outubro a Beirute para passar um ou dois dias com Carlos Ghosn, o antigo presidente da Renault-Nissan, talvez o executivo mais importante do mundo nos últimos 30 anos.
2 – Numa operação armada pelos japoneses e pela Procuradoria, Carlos foi preso no aeroporto de Haneda em 19 novembro de 2018, como forma de frustrar os planos de fusão empresarial das empresas. Levado a uma masmorra de Tóquio, os japoneses o humilharem como puderam. Mas não o vergaram.
3 – O que eles fizeram com Ghosn o Direito chama hoje de character assassination. Faz-se tantas acusações pérfidas (festa em Versalhes, horas de jato corporativo, compra de casas) – e tão insignificantes diante do que ele era e representava – que, no momento de desmentir, já é tarde: você está estigmatizado.
4 – O que fizeram com ele num plano global e midiático, é o que chantagistas tentam fazer hoje quando difamam por redes sociais e espalham uma versão magnificada de uma filigrana. Mesmo que isso resulte em cadeia para o difamador, e pesadas multas, o estrago de imagem já está feito.
5 – Ghosn percebeu o que estava em jogo. As chances de pegar muitos anos de cadeia no Japão eram de mais de 95%. Em vários artigos que publiquei, concitei-o a fugir, a escapar, e sobre ele escrevi um conto chamado “Um elefante em Ginza”, saído no livro “Qualquer Sensação Súbita.”
6 – Carlos fugiu do Japão escondido numa caixa de instrumento musical, ajudado por dois especialistas em exfiltração que ludibriaram os fiscais sonolentos do aeroporto de Kansai nas festas natalinas. Foi um feito extraordinário. Soube dele no fim de 2019, quando cheguei a Girona para as últimas férias pré-Covid.
7 – Carlos saiu da prisão domiciliar em Tóquio, encontrou com os dois americanos no hotel Hyatt de Shinjuku, saiu de trem-bala da estação de Shinagawa e chegou a Osaka. Daí foram para o hotel e de lá ele já saiu na caixa de música. Um jato levou os três para o aeroporto de Istambul, de onde ele foi para Beirute.
8 – Carlos não pode sair do Líbano, sob pena de ser preso. Como preenche o tempo hoje? Dá aulas numa universidade privada e é conselheiro de startups locais. Vive uma vida confortável e sabe-se lá se sente falta da vida anterior. Mas certamente a privação da liberdade o angustia.
9 – Desde que recebi uma carta de agradecimento dele e manifestações de uma irmã que vive no Brasil, tenho pensado em ir a Beirute para conversarmos sobre como o aprendizado de tudo isso. O que aconteceu com ele em Haneda foi abominável. A reinvenção de vida desse brasileiro de Roraima me fascina.
10 –À espera de que as coisas serenem por lá, torço sobretudo para que Ghosn readquira seus direitos de ir e vir e que ganhe os processos que moveu contra a Nissan e seus abjetos dirigentes da época. Não vou poder ir a Beirute desfrutar de sua hospitalidade, mas agora é só uma questão de “quando”, e não de “se”.
11 – Fui apresentado a Carlos em Paris pelo antigo embaixador José Maurício Bustani. Meus amigos de rodas altas da França – uns poucos grandes “cadres” – olhavam-no com certa suspeição e deliberada inveja justamente por ser o sujeito policrômico e cosmopolita que ele era, sem tempo para panelas.
12 – No Japão, ele terminaria sendo visto como elemento hostil pelas mesmas razões. E no Brasil, ele era visto como um francês. Foi o Líbano, terra de seus avós, que lhe abriu as portas. Pessoas singulares podem ser alvo preferencial de mesquinhos e medíocres. Mas elas são indômitos patos selvagens que voam alto.
A reinvenção de vida de Carlos Ghosn me fascina