A alma das cidades

As saudades mais fortes não virão agora

Não subestimo os traumas do Recife com a água

1 – Albert Camus tem uma tese divertida de que você conhece um lugar pela forma como nele se vivem os ritos da morte. No Recife, uma chuva mediana pretextou uma enxurrada de justificativas para o não comparecimento à missa de sétimo dia de mamãe. Quanto a mim, atravessei a cidade com zero de dificuldade e a missa transcorreu sem que uma gota caísse no estacionamento. É cultural.

2 – Ano passado, em Porto Alegre, tínhamos um lançamento de livro. Choveu absurdamente a tarde toda. Perto da hora dos autógrafos numa instituição judaica local, eu comentei com a organizadora: “Acho que não virá ninguém. Só eu e tu.” Ela me disse: “Tu não conheces o Rio Grande, tchê. Todo mundo aqui tem guarda-chuva, capa e galocha. Para o gaúcho, isso não é nada.”

3 – De fato, deu casa cheia no dilúvio. Ontem, todos nós, familiares de mamãe, recebemos justificativas de amigos. Não subestimo os traumas do Recife com a água. Mas não imaginava que tantos dos nossos conhecidos vivessem em áreas tão vulneráveis. Até o taxista quis fazer charme. Cobrou R$ 50, sem taxímetro, “por mor da chuva”. Paguei, cruzamos a cidade sem interrupções. Água no Nordeste sempre foi negócio.

4 – Conheço bem a igreja do Colégio São Luís. Estudei lá entre 1967 e 1969. Tem coisas na cidade que não mudam, como os pontos de alagamento. Já naquela época, o padre Gabriel, um holandês alto e sorridente, tinha de negociar com o microfone porque a estática e a microfonia derrubavam o som nos graves e disparava nos agudos. É possível que sejam as mesmas caixas de som de meio século atrás. Francamente.

5 – No Recife, teme-se a chuva, mas também o padre e o sacristão dele. Ninguém ousa dizer que não se está entendendo patavina do que ele diz. Falei ao microfone. Achei que poderia lidar melhor com ele. Soube no jantar que se seguiu que ninguém entendeu uma palavra do que eu disse. Mas não culparam o som. E sim minha braguilha que estava aberta, com o zíper escancarado.

6 – Hoje completar-se-á uma semana que mamãe morreu. Vou dar por encerrado meu período de luto porque nele taxistas se prevalecem de minha fragilidade para impor suas regras e padres melífluos não têm o pejo de testar equipamentos e instalações para o exercício do seu ofício. Se eu agisse com ambos a minha maneira, iam dizer que eu estava criando escarcéu às expensas da dignidade de minha mãe. Sobrou a braguilha.

7 – No mais, não há do que me queixar. Desde que cheguei aqui, fui paparicado a mais não poder. Comemos regiamente todos os dias embora o cozido do Tasca, no último domingo, tenha sido uma provação para minha claustrofobia. Imagine-se um lugar pequeno com 60 pessoas comendo cozido ao mesmo tempo. O ar condicionado marcava 19º, mas parecia que estávamos a 40°.

8 – Mesmo assim, o almoço foi bom. Apesar do perfume doce das mulheres, das bochechas atapetadas de pó de arroz e do tom empolgado dos homens que alardeiam em altos brados os negócios que estão em pauta. Todos têm brios e falam em catapultar terrenos baldios contra áreas de troca. Não se fala de teatro, viagens, música ou literatura. Recife é essencialmente mercantil.

9 – Hoje pela manhã recebi pelo menos cinco mensagens de gente me recomendando tomar remédios contra diabetes para perder peso. Outros me viram meio ofegante. De costas, pelo arquear das minhas costas, identificaram asma, enfisema, bronquite, pneumonia, artrite, lordose, lumbago, arritmia e insuficiência pulmonar. Um sujeito disse que eu deveria ficar aqui para uns meses de cura.

10 – Aqui é assim. Teme-se um chuvisco, mas ninguém pensa duas vezes antes de avançar um diagnóstico. Uma amiga querida, de nobres raízes pernambucanas, diz que as saudades mais fortes não virão agora. Elas virão mais adiante, daqui a alguns meses, quando tudo indicar que a ferida esteja cauterizada. “Pelos seus escritos, eu sabia que você estava preparado para o desfecho de agora. Depois é que serão elas”. Acho que ela tem razão.

As saudades mais fortes não virão agora

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