Um copo de sangue aos canibais

As empresas dominadas pela opinião pública digital

Empresas dominadas pelos clientes talvez não existam mesmo, mas companhias escravizadas pela histeria digital, sim – e que essas são tão merecedoras de reprovação quanto as primeiras

Quando cursei o mestrado, um dos meus professores fazia questão de diferenciar empresas orientadas para o cliente daquelas dominadas por eles. As primeiras representavam uma espécie de fim último do marketing: tinham a capacidade de converter necessidades e desejos dos consumidores em produtos e serviços econômica e tecnologicamente viáveis. As segundas, ao contrário, submetiam-se a todos os caprichos dos compradores, e, por esse motivo, colocavam em risco sua própria sobrevivência – no limite, afinal, tudo o que um consumidor quer é um produto perfeito de graça.

Sempre achei que a advertência do professor tinha muito mais caráter pedagógico, ao permitir diferenciar facilmente certos conceitos a partir de exemplos extremos, do que prático; uma empresa que faz tudo o que os clientes querem, obviamente, não existe nem jamais teria existido.

Mas a era das redes sociais e do cancelamento me obriga a rever esta ideia. Se não há exatamente empresas dominadas pelos clientes, agora a todo momento aparecem aquelas visivelmente dominadas pela opinião pública – ou, ao menos, a opinião pública que se mobiliza on-line, talvez nem tão representativa assim da sociedade. Foi o caso de Gerdau e Fiat, semana passada, quando ameaçaram retirar o patrocínio de um time de voleibol em função de postagens supostamente homofóbicas de um de seus jogadores.

Friso a palavra “supostamente” pois não vi, no texto de Maurício Souza, qualquer referência que justificasse o escarcéu que se seguiu. Até porque, convenhamos, tratava-se de uma banalidade: a reprovação moral à bissexualidade de um personagem de histórias em quadrinhos. Nenhuma ofensa direta ou leviandade, nenhum textão repleto de injúrias ou preconceitos; apenas uma opinião tida como conservadora acerca de um símbolo da cultura pop.

Alguém pode alegar, não sem razão, que Gerdau, Fiat e Minas Tênis Clube foram pragmáticos ao resolver um potencial problema de imagem pela raiz, livrando-se de seu causador. Eu, ao contrário, acredito que só estejam contribuindo para alimentar o monstro das torcidas organizadas digitais empenhadas em fazer valer, na marra, sua visão de mundo. E conferir poder a quem não tem, na verdade; casos verdadeiramente graves de crises de imagem já foram contornados sem concessões de monta. Por que agora seria diferente? A Vale destruiu duas cidades em Minas Gerais e nem por isso é menos cotada na bolsa de valores ou de empregos.

Provavelmente, em uma ou duas semanas o episódio Mauricio-Superman estaria esquecido, substituído por outra polêmica tola que volta e meia assalta o ambiente digital. Os gestores de redes sociais de Gerdau e Fiat teriam lá um ou dois serões de monitoramento de hashtags hostis e CTRL-C CTRL-V de respostas protocolares e… assunto encerrado. Ao oferecer a cabeça do jogador na bandeja, escancararam quão suscetíveis são às pressões dos cuspidores de regras da internet.

E quase vinte anos depois de iniciadas as aulas no mestrado, descubro, enfim, que empresas dominadas pelos clientes talvez não existam mesmo, mas companhias escravizadas pela histeria digital, sim – e que essas são tão merecedoras de reprovação quanto as primeiras.

As empresas dominadas pela opinião pública digital

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