As contradições que o desafio ambiental comporta
Se as enchentes gaúchas de maio serviram de alerta a toda a Terra sobre o impacto real das mudanças climáticas, a comoção provocada pelo corte de uma árvore centenária no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, logo no início do mês seguinte, sintetizou muitas das contradições que o desafio ambiental comporta. Recordando: em meados de junho, uma construtora pôs abaixo um grande guapuruvu na rua Eça de Queiroz para dar lugar a um empreendimento residencial, gerando revolta na vizinhança — que, imediatamente, acorreu às redes sociais para protestar.
De nada adiantou explicar que o vegetal era inapropriado para o espaço urbano e que, frágil e oco, perigava cair no lote ao lado; o futuro condomínio, batizado de Verdant (“verdejante”, em francês), é que deveria fazer jus ao nome e ser construído em torno da árvore, afirmavam os internautas. Ademais, acusavam, como uma cidade recém-assolada por uma inundação abria mão de um ativo natural tão valioso para capturar carbono da atmosfera e absorver águas da chuva? A obrigatoriedade de a incorporadora plantar 14 mudas de árvores a título de compensação ecológica pouco importava, uma vez que elas demorariam a se tornar adultas e, ofensa-mor, poderiam ser semeadas em qualquer outro ponto da capital gaúcha, prestando seus serviços ambientais em plagas distantes deste centro do mundo chamado Petrópolis.
Há um misto de razões para a indignação. A mais aparente é a biofilia, sentimento humano de vínculo com as coisas vivas que é afrontado diante da morte de um animal ou vegetal. Trata-se de uma sensibilidade inata que se aprimorou com o tempo; até meados do século 18, a maior parte das plantas e dos bichos existia exclusivamente a serviço do homem, e qualquer preocupação com seu bem-estar soava descabida. A biofilia fortaleceu-se nos últimos 50 anos, com a consciência ambiental, e intensificou-se à medida que a ameaça representada pelo aumento da temperatura média da Terra tornou-se pauta recorrente. Basta lembrar que, em 1970, a revista Manchete, referindo-se a uma das muitas obras do governo federal na região amazônica, dizia ser necessário “rasgar o inferno verde” para construí-la. Quantas suscetibilidades não seriam feridas com uma frase assim, hoje em dia?
Mas o outro motivo para a insurgência digital (e para os escrachos sob a forma de cartazes nos tapumes do canteiro de obras) é o que melhor condensa o impasse ambiental. Os indignados habitantes de Petrópolis tomaram as dores do vegetal porque lhes incomoda ver mudar o bairro em que moram, onde casas residenciais gradualmente vão dando lugar a edifícios que não apenas adensam a região, como também lhes fazem sombra e prejudicam a circulação do ar. Esquecendo convenientemente que a maior parte deles vive em prédios — do alto dos quais, inclusive, fotografaram a derrubada da árvore — construídos em terrenos onde antes havia casas, que por sua vez substituíram… árvores (quiçá seculares). Não muito diferente da campanha contra os supostos “espigões” do Moinhos de Vento, anos atrás, abraçada por moradores de condomínios verticais insatisfeitos com a impossibilidade de congelar o bairro como lhes aprazia — ou seja, no estilo “ninguém mais entra”.
E por que tamanha representatividade do guapuruvugate? Porque toda dificuldade em assumir responsabilidades diante da emergência climática consiste na incapacidade de convergir infinitos interesses particulares, geralmente imediatos e concretos, para um único benefício comum, futuro e incerto. E me refiro, aqui, a interesses particulares que começam no indivíduo — que consome produtos agropecuários e industrializados diariamente, precisa do carro para deslocamentos e do avião para viajar a trabalho ou lazer, todos pródigos em emissão de gases estufa — e chegam aos estados-nação, cujas economias dependem justamente dessas atividades poluentes e enfrentam uns aos outros na arena do comércio internacional. Com um agravante: se sabidamente a influência de uma pessoa para mudar o quadro climático é nenhuma, a dos países, separadamente, também não é lá muito maior. À exceção de Estados Unidos e China, quaisquer outras nações têm efeito marginal sobre os rumos da temperatura do planeta.
Some-se a isso a dimensão cronológica. O estágio corrente do aquecimento global deve-se a 300 anos de industrialização conduzida pelos países ricos, que elevaram seus níveis de vida e, agora, compartilham as externalidades negativas com todo o restante. É razoável pedir às nações em desenvolvimento — inclusive à China — que mergulhem de cabeça numa descarbonização cara e demorada a fim de ajudar a salvar um mundo economicamente integrado, no qual o sacrifício de um pode virar a vantagem competitiva do outro — sendo que este outro, não poucas vezes, é aquele que saiu primeiro na corrida do progresso material e levou o planeta ao estado atual? Não haveria aí um autointeresse do primeiro mundo travestido de bom-mocismo ambiental, mais ou menos como o dos guapuruvers de Petrópolis, adeptos do “antiguidade é posto”? No mesmo mês de junho, o presidente Lula manifestou-se favoravelmente à exploração de petróleo nas bacias da margem equatorial do país. Reconheceu que se tratava de uma contradição com o projeto de transição energética, mas que não poderia abdicar de uma riqueza potencial de grande monta, sabedor de que nada adianta o comprometimento brasileiro sem contrapartidas do Hemisfério Norte e da Ásia. Por um lado, lamento a decisão; por outro, não o crítico.
O legado negativo da era industrial e da cultura de consumo, além da mudança permanente nas condições naturais da Terra, foi produzir uma sociedade de mentalidade adolescente e publicitária, crédula de que aquilo que chama de bem-estar e conveniência é isento de sofrimento ou escolhas difíceis. Que finge não saber que a comida farta e barata se deve à monocultura; a mobilidade e o conforto térmico, à poluição; a existência de cidades, à derrubada da vegetação nativa; e as roupas e traquitanas eletrônicas acessíveis, a trabalhadores mal pagos do terceiro mundo. E que, claro, adora um histrionismo online, palco perfeito para a sinalização de virtude e do proselitismo woke.
Nos estudos de comunicação, chama-se de “significantes vazios” aquelas palavras ou expressões que, ao longo do tempo, acabam incorporando conotações múltiplas, difusas e não raro contraditórias, fruto de sua apropriação por diferentes atores sociais. Tais quais o guapuruvu portoalegrense, são vocábulos lindos, mas frágeis e ocos, porque na aparência sugerem muitas coisas, geralmente louváveis e desejáveis, enquanto seu conteúdo revela pouco ou quase nada. “Sustentabilidade” e “combate às mudanças climáticas” são casos típicos: sagrados para uns, relativos para outros e atribuíveis a terceiros por todos. Aos desabrigados pelas cheias do Rio Grande do Sul, meus votos de pronta recuperação. Aos chorosos guapuruvers de Petrópolis, também.
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