Perplexos

Em dois boxeurs, um pouquinho do Brasil e dos Estados Unidos

Sobre os perigos dos danos cerebrais da sua atividade, Maguila dizia não temer a loucura, pois “não deve ser pior do que passar fome” (Foto: Divulgação)

“Eu vou lutar, eu vou lutar/Eu sou Maguila, não sou Tyson”.

Os versos de “Perplexo”, do Paralamas do Sucesso, podem não fazer muito sentido aos mais jovens, mas em 1989, quando a canção foi gravada, resumiam bastante bem o momento brasileiro – e a razão da analogia com seu principal pugilista da época. Enquanto se surpreendia com as recorrentes pancadas econômicas (“fim da censura/do dinheiro/muda nome/corta zero”) e burocráticas (“entra na fila/de outra fila/pra pagar”) impingidas ao país, Herbert Vianna reconhecia que ao cidadão médio só restava ser resiliente, tal qual um boxeador encurralado no corner. Fácil era a vida do norte-americano que derrubava adversários por nocaute nos primeiros rounds.

Adilson “Maguila” Rodrigues morreu semana passada, de tanto soco que tomou – e não se trata de uma figura de linguagem. Sofrendo há anos de uma demência decorrente dos repetidos golpes na cabeça, a chamada “síndrome do pugilista”, vivia um ocaso equivalente à obscuridade dos tempos de pedreiro. No imaginário popular, permaneceu somente a faceta folclórica do sergipano de oratória arrevesada e frases pitorescas, e não a do desportista de bons predicados e relativo sucesso. Uma curiosa semelhança com o próprio país, que, a despeito de alguns avanços, ensaia desde aqueles tempos voos jamais completados rumo à civilização, restando apenas como desalento e galhofa.

O que a música paralâmica não previa era que os Estados Unidos se veriam refletidos também na trajetória errática de seu então supercampeão de pesos pesados. Já no ano seguinte ao lançamento do hit, Mike Tyson perderia o título mundial para um lutador desconhecido e, daí em diante, rolaria ladeira abaixo: foi condenado à cadeia por uma inconvincente acusação de violência sexual, devolvido aos ringues numa disputa farsesca e eternizado nos anais da infâmia por morder a orelha de um oponente. Um paralelo quase perfeito com a América de fins do século 20 e início do 21, envolta em escândalos sexuais, eleições suspeitas, derrotas para adversários caricatos (os terroristas do nine-eleven) e arrivismo bélico descarado (com a invasão do Iraque). Para cada tropeço de Tyson houve um equivalente nacional em matéria de puritanismo, vigarice ou incompetência.

Só que, à diferença de Maguila, que caiu para não se reerguer, Tyson sobrevive como lenda e subcelebridade, ostentando um eterno cinturão simbólico. Parecido, aliás, com o que exibe os Estados Unidos, ainda a maior superpotência do mundo, a despeito das máculas sucessivas e prestes à repetição: menos de quatro anos depois do seis de janeiro, Donald Trump ameaça eleger-se novamente. Hoje, são os norte-americanos, a exemplo de um animalesco Tyson enfiando os dentes no lóbulo esquerdo de Evander Holyfield, quem mais causam perplexidade no mundo. Mas ninguém há de subestimá-los, nem deixar de lhes levar a sério.

Ao contrário do Brasil, cada vez mais parecido com a simploriedade de Maguila quando no auge. Sobre os perigos dos danos cerebrais da sua atividade, dizia não temer a loucura, pois “não deve ser pior do que passar fome”. E tirado dos canteiros de obra para os tablados de boxe, resumia assim o que a vida lhe impusera: “Ou a gente sobe no ringue para bater nos outros ou volta para a vidinha de João de Barro”.

Ao brasileiro comum, ainda hoje, cabe lutar ou lutar.

Em dois boxeurs, um pouquinho do Brasil e dos Estados Unidos

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