Negociando com o mundo

Mesmo quando as possibilidades de negócio são discretas, o espetáculo da interculturalidade está à sua disposição

Nunca ouvi de um japonês sermões sobre a importância do trabalho em equipe, o respeito aos mais velhos, a pontualidade, o civismo, o senso de honra e dever, a confiança, a cortesia, a inventividade ou as bebedeiras noturnas como elemento de sociabilidade profissional e inclusão

Trabalhei com muitos povos. Com cada um deles, fui apreendendo algumas das características mais marcantes, pelo menos aquelas que eu conseguia detectar. Muitas vezes, eram só idiossincrasias pessoais, traços que refletiam mais o indivíduo do que a cultura à qual ele pertencia. Isso não era incomum entre homens de negócio intelectualizados, algo excêntricos, que sabiam manter o recuo e resistiam ao efeito manada.

Outras horas, essa defasagem era menor, havia um distanciamento do sujeito com respeito ao contexto, um leve ar crítico, uma concessão ao fato de que as regras do jogo ali vigentes não eram universais, mas, por outro lado, admitia que elas eram inquebrantáveis, inegociáveis – “porque aqui é assim”. Eram paradigmas comuns a contextos autoritários, estados policiais e sujeitos a algum tipo de dogma que emanava do poder ou da fé como agente de controle.

No caso do Japão, sempre me pareceu que o cenário cultural era tão dominante que simplesmente não havia espaço para um sujeito estar numa grande corporação sem que comungasse integralmente do credo vigente na empresa e no país, que se confundiam com uma só entidade. Os japoneses não conseguem fazer diferenciação cognitiva entre o que é vigente lá, no íntimo deles e para eles e as realidades alternativas, tocadas de outra maneira.

Assim, nunca ouvi de um japonês sermões sobre a importância do trabalho em equipe, o respeito aos mais velhos, a pontualidade, o civismo, o senso de honra e dever, a confiança, a cortesia, a inventividade ou as bebedeiras noturnas como elemento de sociabilidade profissional e inclusão. Tudo isso para eles é tão descaradamente óbvio que dormita sob um manto de silêncio, pulsando em todas as instâncias.

Como dizia, aprendi e aprendo com todo mundo um pouco. Mesmo quando as possibilidades de negócio são discretas, o espetáculo da interculturalidade está à sua disposição. É só se esquecer um pouco de você e deixar que as palavras brotem, que os não-ditos floresçam, que os olhares expressem as tais mil palavras do adágio. Não houve um país de onde eu não tenha trazido um interlocutor representativo, um traço local.

Daí que nem sempre entendo os ratos de museus e catacumbas. Como é que as pessoas viajam para se trancafiar em masmorras e se equipar de fones para escutar em 26 línguas aquelas explicações tediosas sobre o peso das pedras, as dificuldades dos arquitetos de antanho e o pente de Cleópatra? O lugar para saber sobre essas coisas é nas ruas, falando com pessoas inverossímeis. Integro casa dia mais o grupo dos que detestam museu e ousam admitir.

Na última noite, devo ter sonhado com o Japão.

Mesmo quando as possibilidades de negócio são discretas, o espetáculo da interculturalidade está à sua disposição

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