Que sua morte destrave os caminhos para que um dia o bom senso prevaleça
Deficiência de Vitamina D.
Hassan Nasrallah não sabia há muito tempo o que era levar sol. Para ele, que tinha todas as razões do mundo para ser um rematado paranoico, uma aparição mínima à luz do dia poderia dar a Israel a pista que faltava para sua eliminação. No campo inimigo, Nasrallah era dissecado como uma bactéria no microscópio. Quando discursava, contavam menos as palavras que dizia ou as pautas que omitia. Contava ouvir-lhe a respiração, ver quantas vezes tomava água, perceber nele o avanço da asma, os indícios de hipertensão, a chegada galopante do diabetes, avaliar-lhe os rins, os tons da pele, a dilatação das pupilas no auge da fúria.
Aos 64 anos, Nasrallah era obcecado pelo que saía sobre ele na mídia israelense. De certa forma, fazia um jogo de gato e rato com a opinião pública inimiga, a que mais o conhecia. Saber que era retratado como um homem de inteligência incomum o envaidecia. Ser apontado com megalomaníaco, autocrático e narcisista era secundário mesmo porque essas palavras são construtos mentais ocidentais, logo insuficientes para aquilatar sua missão política e religiosa.
Sempre de turbante preto, sinal de descendência do Profeta, Nasrallah não preparou a sucessão no movimento. Comandou o Hezbollah à sua maneira: cada um deveria saber só o que interessava para o cumprimento da missão. Ele pensaria por cada um e por todos. Hassan Nasrallah passou metade dos seus 64 anos à frente do movimento, que assumiu depois da morte de Abbas El-Musawi, também aniquilado por Israel. Na virada do milênio, quando Ehud Barak devolveu o Sul do Líbano para Beirute, Nasrallah assomou como herói e se deu ares de vitorioso. Homem mais poderoso do seu país, não tinha riqueza pessoal – como era o caso dos próceres anti-israelenses ligados ao Hamas, e o de Yasser Arafat, um notório endinheirado.
Imantado da fé xiita que entroniza os mártires, recebia polpuda mesada do Irã, de quem era bom aluno. Arrancava do governo cristão libanês uns bons nacos de participação em obras públicas, que distribuía entre empresários simpatizantes e apoiadores. Na Covid, não quis tomar uma vacina que via como invenção americana. Pai de cinco filhos, avô, vivia cercado de monitores de televisão e de uma esteira ergométrica. Vaidoso, um barbeiro o paramentava para as aparições públicas. Pai da ideia de pagers e walkies-talkies para eludir o rastreamento de celulares, começou setembro de 2024 bem mal, fortemente humilhado e algo desorientado.
O corolário disso pode ter sido ouvir o discurso de Netanyahu na ONU, esperando a hora que o premiê israelense se referisse nominalmente a ele. Àquela altura, uma homenagem derradeira já estava sendo disparada em sua direção. Não é difícil imaginar quais foram suas últimas palavras, se teve tempo de proferi-las. Que sua morte destrave os caminhos para que um dia o bom senso prevaleça e se abra no Levante uma zona de prosperidade. Que os libaneses, desonerados de tanto peso morto, possam fazer jus à máxima que diz: joguem um libanês no mar e ele sairá com dois peixes na boca.
Que sua morte destrave os caminhos para que um dia o bom senso prevaleça