Mamãe e o sol que ela não viu se pôr

Lucy amou sobretudo a vida tal como a tinha

1 – Era uma terça-feira, último dia de abril. Chegaríamos a São Paulo às 17h30, vindos de Istambul. Em duas semanas na Europa, fiz alusões a mamãe a algumas pessoas. Falei de sua vitalidade e do amor à vida. E me lembro de ter dito a Karen Szwarc: “Qualquer hora dessas mamãe se vai. E eu terei de admitir que vivi muito pouco com ela, o que é um desperdício.” A três horas do pouso em São Paulo, a câmera externa do avião estava aberta enquanto sobrevoámos o mar ao largo do Recife, a 300 quilômetros da praia. Havia nuvens de todo tipo. Pensei nela, que gostava de batizar as formações de acordo com a criança que restara em nós: “Lá está um carneirinho. Aqueles fiapos são de algodão doce.” Eram nuvens que estavam prontas para colhê-la. Pensei: “Um pouso técnico nos Guararapes não seria má ideia. Eu ficaria no Recife até o fim de semana e contaria a mamãe sobre a viagem à Península Ibérica.” Mas o voo continuou.

2 – Na chegada a Guarulhos, liguei o celular. Já de Salamanca, eu trazia algumas inquietações. O número do apartamento foi o 404. Não gostei, mas era o que tinha no hotel. Da última vez que vi Tamara no hospital, o apartamento dela era o 1404. Não gosto de “quatros” nas portas. Aprendi com os orientais, para quem o 4 é o símbolo da morte. Liguei o telefone, dizia. Havia uma sequência desesperada de mensagens do meu irmão. A mim, ele relatava o mal súbito e as providências que vinham sendo tomadas. No WhatsApp da família, a informação era mais crua. Um primo já dava as condolências. Coração. Infarto. Quando você recebe uma notícia dessa, a arte está em passá-la adiante a quem precisa sabê-la, com um mínimo de serenidade – para evitar que o outro desmonte, ainda que mais não seja em solidariedade a você. Disse a Karen: “Mamãe se foi. Preciso ir ao Recife por uns dias. Mas quero passar em casa em São Paulo.” Só aí abriram as portas do avião.

3 – Eu podia de Guarulhos mesmo tomar um avião para o Recife. Mas não quis. Preferi ir até meu apartamento, fazer o batismo de entrar ali sabendo que mamãe não mais me ligaria para saber se eu estava pelo menos dando caminhadas, se estava comendo menos. Viria para o Recife na manhã da quarta-feira, 1 de maio. Acionei Ricardo para me pegar às 5h por ser ele a pessoa em que confio cegamente para cumprir horários. Se perdesse o Latam das 07h30, estaria em maus lençóis. Cheguei ao Recife antes das 11h. Os amigos estavam lá me esperando – um mais atencioso do que o outro. Alguns estavam chegando de outras cidade naquele instante no aeroporto. Foi bonito.Eu nunca tido ido àquele cemitério, um pouco fora da cidade. Lá estava mamãe – uma majestade em repouso, afinal. Perguntei ao meu irmão se ela tinha ido ao cabelereiro porque não havia um fio de raiz branca. Ele confirmou. As mãos estavam frias e eu a olhava fixamente na esperança de que ela piscasse. Mas não piscou.

4 – Mamãe morreu na lanchonete do hospital em menos de dez minutos. Acordara naquela manhã com um desconforto no braço, com algum enjoo. Ainda foi ao cardiologista que disse que a pressão estava um pouco elevada. Temendo que pudesse ser encaminhada ao hospital, levara um frasqueira, que permanece fechada. A paradinha para um lanche é de família: antes de ser privado de boa comida por qualquer circunstância, é bom dar uma forradinha com alguma guloseima deliciosa. No meio da farra, o coração parou. Exatamente uma hora antes de minha chegada da Europa. E assim se foi Lucy, minha mãe, que amou seus pais, seus irmãos, seus filhos e netas. Que amou sobretudo a vida tal como a tinha. Divertida, irreverente, amorosa e muito interessada em ouvir o que o outro tinha a dizer, era boa de briga e de verbo. Por onde passou, deixou amigos, lembranças e uma espécie de luz. Gostava de ser o centro das atenções e não fazia feio quando os holofotes se voltavam para ela.

5 – Tenho mil histórias com ela, apesar de nossos temperamentos não recomendarem muito morar sob o mesmo teto. Ela sempre lamentou que eu tivesse ido morar fora, longe dela, levando uma vida largada e impessoal. Nos últimos anos, nossa conversa estava sendo mais concreta. Pouco a pouco, ela começou a entender que as pessoas são diferentes umas das outras e que, apesar do receituário do bom senso ter aplicação universal, mesmo o bom senso em si nem sempre é o mesmo para todo mundo. Imprescindível na vida das netas, reconhecia que tinha sido leniente com práticas que inibiam a iniciativa delas. Gerenciou a vida das que conheceu com mão de ferro e coração de mel. Sempre tivemos discordâncias neste tópico, jamais nos entendemos, mas poucas vezes discutimos feio a respeito. No fundo, prevalecia o humor e o carinho e ela sempre arrematava: “Você foi antes de tudo o filho do seu pai, criado sem eira nem beira, sedento por aventuras no mundo. Eu me identifico mais com o meu pai”.

6 – Mamãe foi um poema em forma de gente. Mesmo morando a muita distância e apesar de ficarmos semanas sem nos falar, eu conversava com ela cá no meu íntimo todo dia. Não vai ser diferente doravante. Custo a acreditar que quando o telefone tocar na casa dela, eu não vá ouvir mais sua voz divertida me dizendo: “Alô, viajante, por qual galáxia tu andas?” É quase meio-dia da sexta-feira no Recife. O dia começou lindo, mas um vento furioso sopra do mar. Pouco a pouco, eu me recupero da cipoada. Teremos a missa de Sétimo Dia no Colégio São Luís na noite da segunda-feira. Depois disso, é bom que eu retome a vida. Nas nossas últimas conversas, combinamos que ela viria assistir à estreia da peça Mazal Tov em São Paulo. Adorou quando eu disse que Dan Stulbach estava sendo sondado pela produção. Queria saber de todos os meus planos e das minhas rotinas. Como vou viver sem os seus alertas quanto aos perigos da dengue, da covid e da pneumonia? Quem vai me sinalizar os alertas de tempestade e alagamento em São Paulo? Uma enorme cratera se abriu na vida de dezenas de pessoas. Ouvi várias vezes: “Sua mãe era nossa alegria”; “Era uma dama na melhor acepção da palavra”; “Não podia haver pessoa mais divertida”; “Nunca vi tanto amor à vida”. Ah, mamãe, obrigado por tudo. Desculpe meus silêncios, minhas ausências e minhas omissões. Hoje a senhora vai animar uma constelação formada de muitas pessoas amadas a quem peço que mande notícias.

Do sempre seu, Fernandinho.

Lucy amou sobretudo a vida tal como a tinha

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