Entre ser imperador ou lacaio

Um viajante sozinho é um imperador todo poderoso. Acompanhado, ele é uma espécie de lacaio do elo mais fraco

Quando você viaja só e interage com os locais para trabalhar, ensinar, aprender ou conviver, você aprende muito

1 – Nasci só, cresci só — se é que cresci —, e, sozinho, descobri o mundo. Meus roteiros não eram de feitio universal — fosse pelos destinos, pelo custo ou pelo espírito desbravador que me movia. Fiz bons achados sobre o planeta e, em especial, sobre mim mesmo, sem escapar dos equívocos brandos.

2 – A partir de certo momento, passei a viajar acompanhado. Aos 25 anos, fiz uma longa viagem com um diretor antigo, que era meu superior imediato. No ano seguinte, eu o substituí. Aí passei a viajar com meus próprios comandados ou com os acionistas.

3 – Em parte, era duríssimo. “Onde vamos jantar?” “Como é esse país?” “O que eu digo quando o representante me perguntar isso ou aquilo?” “Que horas nós nos encontramos para o café da manhã?” Responder a essas perguntas era uma tortura.

4 – Quis achar durante muito tempo que todo mundo era como eu: intuitivo, independente, curioso, chato e observador. Que na hora de ser simpático, sabia sê-lo como ninguém. Que na hora de não ser simpático, se a situação pedisse ou dispensasse, fecharia a cara e resolveria.

5 – Mas não era bem assim. Viajava com gerentes de todo tipo. Formados nas melhores escolas, bem educados, nada disso os impedia de ser inseguros, carentes, ocasionalmente alcóolatras, compulsivos, reativos e fuxiqueiros. Ou então arrogantes e apressados ao julgar as pessoas, o que resulta fatal na vida internacional.

6 – Havia também indivíduos maravilhosos, é claro. Mas pessoas maravilhosas podem ser cansativas e rebuscadas. Elas perguntam: “Sobrará um tempinho para um museu?” “Por que não vamos jantar num castelo?” É melhor viajar com os chatos. Você diz que vai ver uma ex-namorada e some da vista deles por uma noite, se um estiver surtado.

7 – Quando você viaja só e interage com os locais para trabalhar, ensinar, aprender ou conviver, você aprende muito. Você começa a aprender logo quando desperta. Se duvidar, passa o dia de braços dados com o sublime: à mesa, na cama, na fábrica, na universidade ou nas ruas.

8 – Acompanhado, você não tem escapatória. A pessoa pode se virar para você e fulminar: “Onde é o banheiro aqui?” “Como eu posso saber se você mesma sabe que é a primeira vez que eu estou aqui, criatura? Sei tanto quanto você: nada, zero. Pergunte, pois.” É desgaste puro!

9 – Eu vou falar uma coisa bem antipática, muitos vão me odiar, mas vai do fundo do meu coração. Eu tenho dificuldade de conviver com alguém que não fale pelo menos inglês, francês ou espanhol. Se souber outras línguas, ótimo. Alemão, italiano, russo, hebraico, chinês, o escambau.

10 – Mas a experiência mostra que com quem não fala sua língua mais duas dessas três, crescem as chances de eu cair em profunda solidão a 2, 3, 4, 5 — quantas forem as pessoas. A verdade é inelutável. Um viajante sozinho é um imperador todo poderoso. Acompanhado, ele é uma espécie de lacaio do elo mais fraco. E ponto.

11 – Nem mesmo viajar com a sua mulher é uma opção fácil. Conhecendo-o bem, ela pode até silenciar sobre áreas minadas. Mas por trás do olhar, lateja a pergunta: “Onde vamos jantar?” “Que horas vamos sair?” “Ficaremos aqui uma noite, duas ou três?”

12 – Sozinho, você escolhe o vinho. O cinema. Você lê um livro a cada 3 dias de estrada e lê 2 jornais diários. Escolhe se vai de carro, ônibus, metrô, trem, navio, avião, balsa, a nado ou a pé. Se você não está sozinho, o achaque do outro é soberano. Especialmente se for monoglota. Para o monoglota, o mundo é um espaço estendido dos caprichos dele.

13 – Sou um sem regras já há algum tempo. Sou incapaz de opinar sobre a bagagem alheia. A moda agora é viajar com uma frasqueira, levar a vida num nécessaire. É ultrajante levar uma malinha. Ótimo. Eu não mudo por causa da moda. E mais: eu não sou escravo de wi-fi. Gosto, ademais, de quem é dono do nariz e ocupado.

14 – A experiência mostra que é ótimo viajar com uma mulher que tenha afazeres. Lembro de Lavínia, minha última ex, desenhando projetos em hotéis de Bangkok, Copenhague, Kyoto madrugada adentro. Melhor do que aquelas que dizem: “Visto malha ou casaco?” Eu não nasci para dizer uma grosseria. Nem escrever uma, eu consigo. Mas posso fazer pior. Fico mudo.

15 – Vejo famílias viajando. Todos são infelizes. cada um abdica de 60% de si para dar 40% ao conjunto. No final, fica todo mundo com 20% de satisfação, 30% de ressentimento e jurando a si mesmo que nunca mais vai repetir aquele programa inócuo, dilacerante, assembleísta.

16 – Isso não quer dizer que viajar acompanhado seja sempre ruim. Mas a vida como um todo é um processo violento. A gente nasce apanhando, levando palmada na bunda. E morre com um par de mãos nos esmurrando o peito e dizendo: “Acho que ele não vai voltar, acho que se foi. Menos mal.”

17 – Passei anos viajando a dois ou três profissionalmente. A única forma de aguentar era enchendo a cara dia sim e outro também. Fazendo farra toda noite, pegando no tranco no dia seguinte, trabalhando duríssimo para ser um modelo inspirador — que era o papel do líder. Cansei!

18 – Se, em viagem, você quiser confraternizar com pessoas, escolha-as na rua, no café. Ninguém vai lhe dizer não, acredite. O mundo está cheio de carentes. Se alguém faz o seu tipo, vá lá e puxe uma conversa qualquer — pode ser até meteorológica. Em 15 minutos, se a química for boa, vocês não vão querer se desgrudar.

19 – Sou ranzinza? Não, só estou ficando velho. Hoje estou em Málaga, terra natal de Picasso. Quem vive aqui ao meu lado é Antonio Banderas, cuja casa vejo daqui. Estou com amigos e está sendo divertido. Muito bar, muita risada, muita troca — quase assim.

20 – Mas em 2025, salvo por compromissos ligados à minha pequena vida literária, é prudente viajar sozinho. Justamente por estar com 66 anos, cada dia conta muito. Todo dia tenho que render 70-80%. Se não fizer isso, vou morrer roxo de raiva e viver pela metade. No final, vou ouvir: “Ele não vai voltar, ele já se foi. Menos mal, menos mal.” Viagens, viagens…

Um viajante sozinho é um imperador todo poderoso. Acompanhado, ele é uma espécie de lacaio do elo mais fraco

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