Quem espera e quem cobra? Os sistemas de informática
A caminho de casa, embalado ladeira abaixo, veio a trovoada. Em segundos, fiquei ensopado. Mal tinha saído da livraria, virava eu uma esquina da Brigadeiro, naquele momento exato em que os assaltantes já se posicionam para a faina, estudando o ângulo da barriga que deixa o revólver à mostra para as vítimas e oculto para quem passa. É toda uma arte. Um amigo foi assaltado ali mesmo há poucos meses com a mulher e a filha. Só um celular custava R$ 14 mil – o que deve ter garantido um gordo bônus para o ladrão. Não duvido que o bandido seja o mesmo que vi há pouco em aquecimento. Não duvido que seja conhecido pela ficha criminal, mas, por um estranho sortilégio, vive solto, à procura de telefones e relógios para posar de próspero na frente de malandros como ele que, mais cedo ou mais tarde, o matarão. O Brasil é uma imensa cadeia de leniência. Enquanto desço a avenida à procura de um bar para tomar um conhaque, penso em como ela começou.
Não sei onde começou. Mas desconfio que foi quando os meninos passaram a ser criados pelas avós, sem pai conhecido, e com a mãe trabalhando. São milhões desse jeito. Os apelos do consumo eram massacrantes. As avós os mimavam, não conseguiam dizer não, o carinho doméstico era viciante e o cara ia à rua com sua pior face, tentando equilibrar a equação dos afetos tortos. Depois, mais adiante, quando eu já tinha perdido o contato com o mundo adolescente, soube que aboliram a reprovação escolar. Todo mundo era aprovado no colégio. Dizem que é assim até hoje. Ninguém repetia mais o ano letivo. Eu não sei quem foi o pai dessa asneira, mas eis que mais um elo foi afrouxado na cadeia de cobrança da vida. Até que chegamos a uma espécie de bifurcação. Para um lado, acorreram os bandidos de escol, os voluntariosos, os cegos pela ganância consumista, os assassinos frios que matavam por um patinete, depois por um skate, depois por um tênis, depois por um smartphone. Depois por uma cara feia.
No outro caminho, grassou a meninada do “mande um e-mail”, a turma do regulamento, do “eu só estou cumprindo ordens”, do escreva para o “reclame aqui.” Vejam bem, eu nunca fui um gestor maravilhoso. Nem quis ser. Meu papel nas empresas por onde passei era vender uma visão abrangente sobre o mundo externo, que varresse da presidência ao chão de fábrica. Era mobilizar os gestores em torno de uma estratégia. E depois vinham os encaixes, a gestão diária, os números, a análise de performance. Mesmo assim, nunca negligenciei a gestão de pessoas, dos seus objetivos, do alinhamento a uma macrovisão. E para isso, chamava-as para um corpo a corpo, para ajustá-las de acordo com uma moldura – que elas compravam ou não. Nunca medi esforços. Nunca fui de querer paz no fim de semana, de cobrar a hora extra, do “family comes first”, de me poupar fisicamente, de pedir aumento, de exigir dos outros o que eu próprio não estivesse disposto a fazer com eles. Era a gestão feliz, da alta performance, mas sem cacoetes pequeno-burgueses.
Hoje o mundo está brutalmente modificado. Não se atua mais sobre as pessoas. Enquanto tomo a segunda dose de Macieira e a camisa seca no corpo bem no ângulo do ventilador, me ocorre o ululante: as pessoas não se reúnem mais para inventar um produto, para mexer nas alavancas financeiras do seu negócio, para melhorar o design, para tirar de cada um tudo o que ele pode dar, para que ele possa se ver para além da satisfação do padrão de consumo individual – o que passa por caprichos sectários e impublicáveis. Ninguém busca a transcendência. Todas as reuniões que ouço à minha volta em ambientes os mais variados se voltam para aperfeiçoar o sistema, não as pessoas. É tudo informática e não, gente. Tudo é feito para criar arapucas para aprisionar quem tem algum dinheiro e permitir que uma falange de néscios opere de suas casas, prontos para acusar qualquer pressão que lhes pareça indevida. Só pode. Nem na escola podiam mais ser reprovados. O que esperar?
A Inteligência Artificial já venceu a batalha, é a conclusão a que chego enquanto tomo meu terceiro e último conhaque. Vou pra casa, vou chegar a tempo de pegar o noticiário. Numa idade em que todo mundo diz que o e-mail ficou para trás, não resta dúvida de que ele se tornou o mais eficiente anteparo da incompetência. Cobrar as pessoas de olho no olho é um rito sumariamente descartado hoje. Mesmo porque pode ser que a pessoa em questão esteja falando de Dublin, e não da rua Augusta, como você pensou. Comunicados por WhatsApp pessoal são, por definição, muito próximos. Pendengas por grupos de WhatsApp são geridas por inteligência artificial, uma hora a máscara cai. Redes sociais reverberam barulho e precisam ganhar uma certa escala para serem levadas a sério. Os “fale com” são um engodo descarado. O e-mail é um aide-mémoire para seu follow up. Um popular “lembrete” que de pouco serve contra a incúria e a preguiça.
A arma contra a incompetência dessa milícia não difere muito da coronha do revólver das 19h da Avenida Brigadeiro Luis Antonio que o assaltante mostra quando aborda os motoristas. Quando você faz uma cobrança mais contundente, quando você diz que já mandou o tal e-mail dez vezes e que ninguém se mexeu, que aquela mensagem deve ter caído em alguma caixa de spam, eles sorriem. Igual ao que fazem os bandidos quando, entre eles, contando as façanhas torpes e a reação das vítimas, dizem “perdeu”. O “perdeu” dessa meninada é a falha sistêmica, o spam, as férias intermináveis, a conjuntivite, a dermatite, a greve do metrô, a oitava Covid, a terceira dengue, a mudança de setor, o calor, a chuva, o frio, as traças, os vírus, as férias das férias, as cólicas. Enfim, qualquer coisa que os exima de fazer o que se espera deles. Quem espera e quem cobra? Os sistemas de informática. A gestão por bytes. Nada de cerveja, nada de contato direto, nada de cobrança. Nessas horas, eles correm para a compliance para se queixar. Tudo isso por causa de uma trovoada.
Quem espera e quem cobra? Os sistemas de informática